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O mundo parou. Precisamos parar também!

Um historiador israelense e um ativista dos direitos indígenas brasileiro apresentam suas visões sobre a pandemia do novo coronavírus e provocam reflexões importantes sobre o futuro da humanidade

Eu sei que não é preciso falar que estamos vivendo algo sem precedentes, que, do dia para a noite, a crise do novo coronavírus mudou a forma como vivemos e que provavelmente o que conhecíamos como normal até antes do início da pandemia da COVID-19 não voltará a existir. Porém, é necessário dizer que precisamos aproveitar que o mundo parou para parar também.

Parar e pensar no futuro que queremos viver – aliás, talvez “precisamos viver” seja melhor do que “queremos viver”…    

Neste sentido, nas últimas semanas li dois artigos que me ajudaram a pensar sobre esse mundo novo que precisará surgir para que a humanidade não apenas supere essa crise, mas, principalmente, saia melhor dela.

São dois artigos completamente diferentes, escritos por autores com bagagens de vida bem distintas, mas que se complementam muito bem. Além disso, estão muito alinhados a tudo o que a gente defende por aqui.

Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade é assinado pelo historiador israelense Yuval Noah Harari – que talvez você conheça por causa dos best-sellers Sapiens, uma breve história da humanidade, Homo Deus e 21 lições para o século 21.

O amanhã não está à venda foi escrito pelo brasileiro Ailton Krenak. Ele é ativista do movimento socioambiental e da defesa dos direitos dos indígenas, e também é autor de Ideias para adiar o fim do mundo.

Trouxe desses dois textos (que, aliás, estão disponíveis para download gratuitamente na Amazon – links acima!) e de outras leituras relacionadas aos assuntos abordados por Harari e Krenak algumas reflexões, debates e análises que considero importantes para esse momento e para o “amanhã”.

O dia em que a Terra parou

Uma das citações mais fortes do artigo de Krenak – que nasceu na região do vale do rio Doce, território do povo Krenak – é esta:

“Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: ‘A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática, pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida’. Então, um deles me disse: ‘Mas isso é impossível. O mundo não pode parar’. E o mundo parou.”

O que chama a atenção nessa declaração é que, como destaca o autor, o planeta já vinha dando sinais de que precisávamos repensar nossas atitudes, escolhas, decisões e formas de viver há muito tempo. Porém, parar nunca era possível. Até que se tornou necessário.

No entanto, é inegável que nem todo mundo concorda que parar é o melhor a ser feito neste momento…  

Muitas pessoas (inclusive alguns líderes globais) questionam o impacto dessa decisão na economia mundial e, portanto, buscam acelerar a retomada econômica. Contudo, Krenak argumenta: “Governos burros acham que a economia não pode parar. Mas a economia é uma atividade que os humanos inventaram e que depende de nós. Se os humanos estão em risco, qualquer atividade humana deixa de ter importância”.

Ciência, informação e cooperação:
as principais armas da guerra contra o novo coronavírus

Em sua análise, Harari afirma que a melhor defesa que os humanos têm contra os patógenos não é o isolamento, mas a informação – e a ciência, é claro. “A humanidade tem vencido a guerra contra as epidemias porque, na corrida armamentista entre patógenos e médicos, os patógenos dependem de mutações cegas, ao passo que os médicos se apoiam na análise científica da informação”, aponta.

Contudo, isso não significa que ele defenda o fim abrupto do que tem se chamado de “isolamento social” ou “quarentena”. Pelo contrário, o historiador concorda que essas ações são essenciais para interromper a propagação da epidemia.

No entanto, ele ressalta que apesar do momentâneo distanciamento entre pessoas e até mesmo nações, o verdadeiro antídoto para próximas epidemias não é a segregação, mas a cooperação. “A coisa mais importante que as pessoas precisam compreender sobre a natureza das epidemias talvez seja que sua propagação em qualquer país põe em risco toda a espécie humana”, declara.

“Há centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo sem acesso aos serviços mais básicos de saúde. Isso representa um risco para todos nós. Estamos acostumados a pensar nesse tema em termos nacionais, no entanto oferecer assistência médica a iranianos e chineses também ajuda a proteger israelenses e americanos contra epidemias. Essa simples verdade deveria ser óbvia para todos, mas, infelizmente, ela escapa até mesmo a algumas das pessoas mais influentes do mundo”, complementa Harari.

Por isso mesmo, o autor destaca que para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam confiar nos especialistas, os cidadãos precisam confiar nos poderes públicos e os países precisam confiar uns nos outros. “Nos últimos anos, políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”, analisa.

“Neste momento de crise, a batalha decisiva trava-se dentro da própria humanidade. Se essa epidemia resultar em maior desunião e maior desconfiança entre os seres humanos, o vírus terá aí sua grande vitória. Quando os humanos batem boca, os vírus se multiplicam. Por outro lado, se a epidemia resultar numa cooperação global mais estreita, triunfaremos não apenas contra o coronavírus, mas contra todos os patógenos futuros”, conclui o historiador.

E o futuro?

É impossível terminar de ler os dois artigos referenciados até aqui e não começar a pensar no futuro da humanidade. Afinal, como bem destaca Krenak em seu texto, “o vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise”. “Para combater esse vírus, temos de ter primeiro cuidado e depois coragem”, completa.

Neste sentido, enquanto sistemas de saúde do mundo todo trabalham para por fim à pandemia do novo coronavírus, debates importantes são feitos em outras esferas da sociedade. 

  • Renda básica (não apenas emergencial, mas permanente);
  • Taxação de grandes fortunas;
  • Cidades feitas para pessoas;
  • Sistema de saúde público universal.

Esses são alguns dos assuntos que se tornaram manchetes no mundo todo e que podem nos ajudar a desenhar um cenário mais positivo para o planeta pós-COVID-19. Até porque, falar sobre futuro é também falar sobre esperança… 

“E vejo o futuro que eu quero viver…” 

Fecho o debate de hoje destacando algumas iniciativas que ajudam a trazer esperança de dias melhores. 

Cidades para pessoas

O nível de poluição em grandes cidades do mundo todo caiu drasticamente durante períodos de quarentena contra a expansão do novo coronavírus. Em Milão, por exemplo, ao mesmo tempo em que o congestionamento de veículos declinou até 75%, o índice de dióxido de nitrogênio teve uma queda de 40%. 

Além disso, ao mesmo tempo, o uso do transporte público na capital da região italiana da Lombardia durante a fase mais rigorosa de lockdown caiu 90%.

E aí o sinal de alerta disparou entre os especialistas.

Será que ao fim da pandemia muitas pessoas, temendo novos contágios, não vão trocar o transporte público por carros e, assim, a poluição será ainda pior?

Pensando em evitar esse cenário, a cidade lançou um ousado plano rápido de criação de 35 km de vias exclusivas para pedestres e ciclistas.

Isso não significa, porém, que os carros estarão proibidos nessas áreas. No entanto, com ruas mais estreitas para veículos automotores e velocidade reduzida (o limite será de 30 km/h), optar por percorrer essas áreas de carro será muito pior (e até mesmo mais lento) do que se o percurso fosse feito a pé ou de bicicleta, por exemplo.

E Milão não foi a única cidade que aproveitou o momento para repensar seu plano de mobilidade pública. Nova York, Bogotá, Londres e Paris são outras metrópoles que já estão buscando formas de seguir menos poluídas e mais “feitas para pessoas” no novo normal.

“Cidades que aproveitarem esse momento para realocar espaço em suas ruas para facilitar que as pessoas caminhem, pedalem e usem o transporte público vão prosperar depois da pandemia, não simplesmente se recuperar dela”, analisa Janette Sadik-Khan, consultora que está trabalhando com o governo de Milão e de outras cidades em seus programas de “recuperação do transporte”, em entrevista à BBC.

Dica!
Se você lê em inglês, recomendo muito a leitura do artigo “Estamos testemunhando a morte dos carros?”, da BBC. 

Tudo é político

 

O Havaí pode até não sofrer com poluição como muitos outros cantos do planeta. Porém, há um problema mundial que impacta também o paradisíaco estado norte-americano: a desigualdade de gênero. 

Atualmente, uma mulher nativa havaiana ganha 70 centavos de dólar para cada dólar recebido por um homem americano, e 79 centavos de dólar para cada dólar recebido por um homem nativo havaiano. Isso sem falar do trabalho não-remunerado feito pelas mulheres nos lares havaianos (e no mundo todo, aliás), que se intensificou ainda mais no cenário atual.

Ciente disso, a comissão estadual do status das mulheres do Havaí desenvolveu um plano feminista de recuperação econômica pós-COVID-19.

O objetivo é deixar o antigo normal econômico para trás e aproveitar a oportunidade de reset que a pandemia trouxe para construir um sistema econômico capaz de promover a igualdade de gênero.

O plano, que é uma alternativa às ideias iniciais apresentadas pelo governador do Havaí para recuperar a economia do estado depois do fim da pandemia, visa provocar uma profunda transformação cultural. Para isso, ele incorporan as necessidades únicas de:

  • Mulheres indígenas;
  • Imigrantes;
  • Cuidadoras;
  • Idosas;
  • Mulheres trans;
  • Pessoas não-binárias;
  • Mulheres encarceradas;
  • Mulheres desabrigadas;
  • Vítimas de abuso sexual e sobreviventes de tráfico sexual;
  • Mulheres com deficiência.

Dentre as principais reivindicações do plano feminista de recuperação econômica do Havaí pós-COVID-19, destacam-se:

– Renda básica universal;
– Fundo emergencial para grupos marginalizados – inclusive mulheres imigrantes sem documentos, trabalhadoras domésticas, mulheres com deficiência e sobreviventes de tráfico sexual;
– Co-participação no pagamento de testes e tratamento para a COVID-19 – inclusive para mulheres encarceradas;
– Salário mínimo de US$ 24.80/hora para mães solteiras (atualmente, o salário mínimo no Havaí é de US$ 10.10/hora);
– Creche gratuita, financiada com dinheiro público, para todos os trabalhadores essenciais.

Um exemplo inspirador e que nos lembra que tudo é político – principalmente a forma como governos lidam com os impactos de uma pandemia não apenas na economia, mas, principalmente, na vida das pessoas.

→ Você pode conhecer o plano feminista de recuperação econômica do Havaí em detalhes, em inglês, aqui.

Leia também!

Evolução dos ODS: Educação de qualidade e igualdade de gênero

Cuidado coletivo, resultado coletivo

Como por enquanto só é possível frequentar cafés, bares e restaurantes que possuem espaços ao ar livre e em que há uma distância mínima de dois metros entre as mesas, a prefeitura de Vilnius, capital da Lituânia, liberou gratuitamente ruas e praças públicas para estabelecimentos que originalmente não atendiam esses critérios. Em poucos dias, mais de 150 negócios locais se cadastraram para aproveitar essa oportunidade. 

Ao auxiliar pequenos e médio empreendedores, a prefeitura faz a economia voltar a operar perto do normal e, consequentemente, acaba “se ajudando” também. A empatia e a ajuda coletiva nunca foram tão importantes como são agora.

E o que mais? 

Por último, mas não menos importante, é impossível não falar das inovações que têm surgido em mercados específicos e que além de trazerem retorno financeiro aos seus criadores, também contribuem para que o futuro seja (muito) melhor do que o passado. Caso, por exemplo, das nove ideias que apresentamos neste artigo.

Espero que ao chegar até aqui você tenha ampliado suas reflexões sobre o presente e sobre o futuro e que termine a leitura desse texto inspirado a procurar formas de contribuir para que o mundo pós-pandemia do novo coronavírus seja muito melhor do que o antigo, do qual por um momento tivemos orgulho, mas que há tempos vinha se mostrando insustentável… 

Afinal, tudo isso vai passar. E nós vamos, juntos, fazer do que era um plano B, o único plano possível! 

Imagens: Envato Elements

Natasha Schiebel

Natasha Schiebel é cofundadora e Editora-chefe d'A Economia B.

Jornalista por paixão e formação, Natasha acredita que boas histórias têm o poder inspirar transformações, e aplica essa lente no seu trabalho.

Natasha é líder climática certificada pelo projeto Climate Reality e especialista em jornalismo de soluções.

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