Alice Rawsthorn, escritora e crítica de design, mostra como soluções criativas podem antecipar e responder a crises globais, desde emergências climáticas até desafios sociais, atuando como agentes de mudanças positivas
O que vagões de trens transformados em unidades móveis de saúde na Ucrânia, sistemas de esgoto natural na Índia e a invenção da brigada de incêndio em Londres têm em comum?
Todos esses projetos exemplificam o poder transformador do design.
Indo além da sua função estética e utilitária, o design tem o potencial de ajudar a impulsionar mudanças significativas em diferentes áreas. Ele pode reimaginar sistemas, solucionar desafios complexos e gerar impactos sociais e ambientais positivos que ressoam por gerações.
Esse foi o foco da nossa conversa com Alice Rawsthorn, escritora e crítica de design, durante o Tóquio Fórum 2024.
Na entrevista, ela detalhou o poder transformador do design e compartilhou histórias que mostram como a colaboração entre diferentes áreas tem impulsionado mudanças significativas…
Leia também:
Tóquio Fórum 2024: novas soluções para desafios socioambientais
A importância do design para prever e lidar com crises
Junto com a arquiteta italiana Paola Antonelli, Alice é autora do livro Design Emergency: Building a Better Future.
A obra explora como o design desempenha um papel crucial na abordagem de desafios globais contemporâneos (como mudanças climáticas, crises de saúde, desigualdade social e inovação tecnológica) a partir de entrevistas e histórias inspiradoras de designers, arquitetos, engenheiros e inovadores que estão desenvolvendo soluções criativas e efetivas para problemas urgentes.
Ao abordar o papel fundamental do design perante as crises, Alice destaca sua capacidade de ajudar as pessoas a responderem a situações imediatas e se prepararem para possíveis problemas futuros.
“O design não é apenas um meio de resposta, ele também é antecipatório. Um dos papéis do design é atuar como um agente de mudança, ajudando-nos a interpretar transformações – sejam elas tecnológicas, culturais, econômicas, ambientais, científicas ou de outra natureza – de forma que impactem nossas vidas positivamente”, comenta.
De acordo com a especialista, as respostas de design às crises têm como objetivo principal amenizar seus impactos. “Mas, igualmente ou até mais importante, é usar o design para antecipar crises futuras e planejar de forma proativa como podemos responder a elas, garantindo que os impactos negativos sejam minimizados”, ressalta.
Inclusive, ela frise que, ao longo da história, certas crises resultaram em períodos de intensa inovação e avanços no design porque as pessoas tomaram consciência dos riscos de recorrência. Um exemplo seria o grande incêndio de Londres, em 1666, que começou em uma padaria e destruiu grande parte da cidade.
“Naquela época, os edifícios eram feitos de madeira, o que facilitava sua rápida combustão. Como resposta, foi criada a brigada de incêndio, pois as pessoas perceberam a necessidade de agir estrategicamente para minimizar danos em futuros incêndios”, aponta.
Como o design pode ajudar a combater as mudanças climáticas
Na visão de Alice, a abordagem do design é indispensável para enfrentar uma das principais emergências da atualidade: as mudanças climáticas.
“Nossos esforços para abordar a emergência climática têm sido atrasados e, até muito recentemente, insuficientes. É essencial levarmos a crise a sério, reconhecer os perigos que ela representa e aceitar que precisamos mudar fundamentalmente nosso modo de vida para lidar com ela. O design está profundamente integrado em muitas das soluções necessárias”, alerta.
Para ilustrar o potencial transformador do design, Alice destaca a produção de energia limpa. Nos últimos anos, a geração de energia renovável cresceu muito mais rápido do que se imaginava, atingindo um ponto de inflexão que acelerou sua expansão.
“No Reino Unido, por exemplo, cerca de um terço da energia doméstica agora vem de fontes limpas, graças a investimentos no desenvolvimento de turbinas eólicas e, mais importante, na infraestrutura necessária para distribuir essa energia para indústrias e residências. Isso mostra que, mesmo diante do pessimismo, é possível superar expectativas e criar soluções sustentáveis”, indica.
Outro exemplo citado pela especialista é a adaptação de sistemas de defesa contra enchentes. Enquanto infraestruturas tradicionais, como barragens de concreto, frequentemente agravam o problema, muitas nações têm adotado soluções baseadas na natureza.
O programa Room for the River, iniciado em 2007 pelo governo holandês, ilustra bem essa abordagem.
Em vez de construir barreiras artificiais, a iniciativa criou mais de 30 intervenções para devolver aos rios seus espaços naturais de inundação. O projeto incluiu o rebaixamento de planícies, criação de áreas de contenção, realocação de diques e aprofundamento de canais. Além de aumentar a capacidade de vazão dos rios Rhine, Meuse, Waal e IJssel, as medidas também melhoraram a qualidade ambiental das regiões ribeirinhas.
Leia também:
Cidades europeias apostam em soluções baseadas na natureza para enfrentar mudanças climáticas
Soluções inspiradas em saberes ancestrais
A busca por soluções sustentáveis tem levado especialistas a redescobrirem saberes ancestrais. Alice Rawsthorn observa o crescente interesse no design inspirado por práticas indígenas, muitas delas desenvolvidas há séculos e essenciais para a sobrevivência de comunidades rurais remotas e economicamente vulneráveis. Esse olhar para o passado, segundo ela, reflete tanto uma reação à industrialização quanto o reconhecimento de conhecimentos tradicionais.
“Cada vez mais, designers, arquitetos e engenheiros estão buscando inspiração nesses modelos para encontrar soluções que possam ser implementadas atualmente e que nos ajudem a enfrentar problemas contemporâneos, especialmente relacionados à emergência climática”, comenta.
Nesse sentido, ela menciona a pesquisadora australiana de design Julia Watson, que há mais de 20 anos realiza pesquisas intensivas sobre soluções de design indígena para emergências climáticas. Julia é autora do livro Lo—TEK – Design by Radical Indigenism, que traz alguns exemplos dessas tecnologias ancestrais.
“Essas iniciativas incluem, por exemplo, o uso de cursos d’água naturais para desenvolver sistemas que purificam a água e sustentam peixes. Um caso notável é o sistema de esgoto de Kolkata, na Índia, que é completamente natural: ele não apenas limpa os resíduos da cidade, mas também produz peixes para consumo, aumenta a produtividade de terras cultiváveis e melhora a produção de alimentos como frutas e vegetais”, conta.
Alce detalha ainda que o trabalho de Julia se concentra em identificar tecnologias indígenas adaptáveis, garantindo que, ao serem adotadas em países mais ricos, as comunidades que as criaram sejam devidamente remuneradas e reconhecidas. O objetivo é evitar a exploração típica de práticas coloniais do passado.
Leia também:
Inteligência Ancestral: uma IA fundamental em tempos de emergência climática e policrise
Design e colaboração
O design é, em sua natureza, uma disciplina colaborativa – explica Alice. De acordo com a especialista, essa atitude colaborativa é fundamental para responder e prever crises globais.
“É crucial que designers colaborem com especialistas de outras disciplinas, que possuem o conhecimento e as habilidades específicas necessárias para compreender situações de risco e emergências. Esses especialistas podem aconselhar e ajudar os designers a desenvolver as respostas mais adequadas”, frisa.
Como exemplo dessa abordagem, ela cita Hilary Cottam, pioneira do design social, que utilizou sua formação em ciências sociais e economia de desenvolvimento para abordar falhas em grandes projetos de infraestrutura.
“Hilary percebeu rapidamente que havia uma diferença significativa entre o sucesso e o fracasso de diversos projetos. Ao investigar o porquê, ela identificou os fatores que poderiam levar ao fracasso, com o objetivo de prevenir problemas futuros e melhorar os aspectos positivos dos projetos. Sua conclusão foi que a diferença estava na qualidade do design”, conta.
Essa descoberta levou à criação da Participle, empresa social britânica focada em redesenhar sistemas sociais em crise, como cuidados para idosos, desemprego e moradia. Com equipes multidisciplinares, a iniciativa demonstrou como uma visão integrada pode transformar desafios sociais complexos.
Além disso, Hilary percebeu que designers tinham uma habilidade instintiva de comunicação, essencial para:
- Incentivar as pessoas a compartilhar, de forma aberta e honesta, questões profundas e difíceis;
- Persuadi-las a participar de processos experimentais para testar novas ideias;
- Articular propostas de maneira convincente para atrair financiamentos de fundos, fundações e governos, identificando rapidamente os argumentos mais persuasivos para engajar diferentes públicos.
“Esse é um exemplo de como uma abordagem iluminada e aberta à colaboração, fundamentada em princípios, perspectiva e processos de design, pode gerar resultados muito positivos. Quando os designers trabalham em colaboração com a equipe financeira, a equipe de compras, os engenheiros que supervisionam as operações de infraestrutura, é assim que as soluções realmente são desenvolvidas”, destaca Alice.
A importância da comunicação diante de crises
“Se você quer ajudar as pessoas, a última coisa que deve dizer é: ‘NÃO FAÇA ISSO’.”
Essa frase de Mark Dalton explica bem a estratégia da agência Clemenger BBDO Wellington ao desenvolver a campanha United against COVID-19 para o governo da Nova Zelândia.
A campanha teve um enfoque em mensagens positivas, indicando o que as pessoas podiam fazer para contribuir durante a crise – ao invés de apenas salientar o que não deviam fazer.
Segundo Alice, essa abordagem mais prática, como sugerir que as pessoas tossissem no cotovelo, não apenas ajudou a conter a disseminação do vírus, mas também deu às pessoas a sensação de estarem contribuindo para um esforço coletivo.
“A visão de Mark era que, em uma crise global como a pandemia, marcada por tanto medo e incerteza, dizer às pessoas repetidamente o que não fazer só aumentava a ansiedade”, explica.
A especialista ressalta que essa lógica pode ser aplicada a outras áreas, incluindo a emergência climática. No entanto, ela defende que precisamos de uma combinação de mensagens sobre o que “não fazer” e o que “podemos fazer”.
“Certamente estaríamos muito mais adiantados nos esforços climáticos se indivíduos e organizações tivessem adotado as medidas atuais há 10, 20 ou 30 anos. Mas, hoje, é crucial dar às pessoas a sensação de que podem fazer contribuições positivas”, frisa.
Ela reforça que embora mensagens restritivas (como “não use combustíveis fósseis”) sejam importantes, elas precisam ser equilibradas com exemplos do que pode ser feito. Soluções simples e resultados positivos, como os exemplos compartilhados por Alice nessa entrevista, mostram como pequenas ações podem ter grandes impactos.