A luta antirracista deve ser uma luta de todos. Entender de verdade o racismo e o impacto dele na vida das pessoas negras é a primeira etapa dessa jornada. Os livros, podcasts e vídeos que apresento aqui podem ajudá-lo nessa caminhada
Em um sábado de janeiro deste ano, navegando pelos e-books disponíveis gratuitamente na Amazon (quem nunca?), a sinopse de O perigo de uma história única chamou minha atenção…
“O que sabemos sobre outras pessoas? Como criamos a imagem que temos de cada povo?
Nosso conhecimento é construído pelas histórias que escutamos, e quanto maior for o número de narrativas diversas, mais completa será nossa compreensão sobre determinado assunto.
É propondo essa ideia, de diversificarmos as fontes do conhecimento e sermos cautelosos ao ouvir somente uma versão da história, que Chimamanda Ngozi Adichie constrói a palestra que foi adaptada para livro.”
Eu não pensei duas vezes antes de baixar. Afinal, já tinha lido dois livros da autora (e gostado MUITO) – Sejamos todos feministas e Para educar crianças feministas –, sabia que uma grande amiga é muito fã de Americanah (que, aliás, é a sugestão dela para esta lista!) e esses três parágrafos acima mexeram demais comigo. Isso porque antes mesmo de começar a ler, eu entendi que Chimamanda ia me tirar da minha zona de conforto, ia me dar um recado que eu precisava ouvir.
Repensando o papel da leitura
Apesar de gostar muito de ler, por muito tempo a leitura foi um hábito de relaxamento para mim. Como faz parte do meu trabalho como jornalista ler textos técnicos e, portanto, muitas vezes densos, tudo o que eu queria ao fim de um dia puxado era abrir um romance água com açúcar e ver a vida com uma lente cor-de-rosa…
Mas eu sabia que esse tipo de leitura me mantinha dentro da minha bolha de privilégios. Ou seja, por mais que fosse uma ótima fonte de lazer (o que não é pecado algum, importante dizer), contribuía pouco para minha formação pessoal e até mesmo profissional.
O perigo de uma história única é um livro curtinho; tem só 44 páginas. Por isso mesmo, li “em uma sentada”. Porém, ele nunca mais saiu da minha cabeça…
Convido você a assistir à palestra que o originou antes de seguirmos nosso papo.
Desde que fui tocada pelas palavras de Chimamanda passei a pensar em escrever esse post. Mais do que isso, passei a escolher com mais cuidado minhas leituras.
O “chamado” final para reunir aqui algumas das obras que me ajudaram a ter um olhar mais empático sobre o mundo fora da minha bolha – e, consequentemente, me inspiraram a buscar maneiras de usar meus privilégios e minha voz para contribuir para a construção de um mundo menos desigual – veio há algumas semanas, quando, dois dias seguidos, li “por aí” reflexões muito alinhadas a essa visão.
A primeira é de autoria do escritor Franz Kafka:
“Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh, Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos.”
A segunda eu li logo que abri A grande arte de ser feliz, de Rubem Alves. Na apresentação, o autor diz assim… “Livros que dão respostas prontas são iguais aos brinquedos que funcionam quando apertado o botão.”
Ou seja, para ele, esses livros “perdem a graça e vão para o armário”. 🙂
Os cinco que apresento a seguir definitivamente não tiveram esse fim para mim. Pelo contrário. Renderam excelentes reflexões, deixaram marcas e ecoaram. Por isso mesmo, os considero um bom ponto de partida para você que também deseja usar a leitura como forma de sair da sua bolha branca e unir-se à luta antirracista.
Porém, é importante destacar que, definitivamente, não são os únicos livros que merecem ser lidos com essa finalidade. São algumas das obras que eu li e que me ajudaram nesse processo. Meu objetivo é que com o que descrevo a seguir você se interesse por ampliar seus horizontes literários e encontre outros títulos que possam ajudá-lo nessa jornada.
O mundo lá fora é mais complexo, é verdade, mas também é mais verdadeiro, provocador e cheio de cores e texturas.
Comentário:
Iniciei a produção deste artigo pensando em apresentar livros sobre diversas temáticas “fora da minha bolha”. Ou seja, ia incluir obras LGBTQIA+, que se passam em países sobre os quais sei pouco (ou nada), que relatam histórias de refugiados etc. No entanto, com tudo o que aconteceu recentemente, optei por focar nessa questão específica.
Leia também!
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5 livros para sair da bolha branca e aderir à luta antirracista
Livro #1 para sair da bolha branca e se unir à luta antirracista:
Pequeno manual antirracista
No mesmo dia em que li O perigo de uma história única, li também Pequeno manual antirracista, da filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro.
Como o nome diz, é um pequeno manual antirracista. Ou seja, não esgota o assunto. Pelo contrário, Djamila apresenta muitas referências bibliográficas para ajudar o leitor a seguir nessa caminhada.
No entanto, é um pequeno manual que provoca reflexões importantes e coloca o dedo em diversas feridas abertas que qualquer pessoa branca minimamente consciente de seus privilégios tem vergonha. Além disso, por ser escrito por uma autora nacional, fala do nosso racismo.
Portanto, é uma leitura obrigatória para qualquer brasileiro branco. Até porque, como diz Djamila…
“Ainda que uma pessoa branca tenha atributos morais positivos – por exemplo, que seja gentil com pessoas negras –, ela não só se beneficia da estrutura racista como muitas vezes, mesmo sem perceber, compactua com a violência racial.”
Livro #2 para sair da bolha branca e se unir à luta antirracista:
Quem tem medo do feminismo negro?
Este livro reúne diversos artigos sobre racismo e feminismo escritos por Djamila Ribeiro para veículos de imprensa brasileiros nos últimos anos. O formato é interessante pois, como cada texto nasce de vivências pontuais e experiências cotidianas, há um pouco de tudo sobre as lutas feminista (focada no feminismo negro, é claro) e antirracista.
“Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo.”
#Ficadica
Djamila Ribeiro é a coordenadora da série de livros “Feminismos plurais” que tem, entre seus títulos, obras como Racismo estrutural, Racismo recreativo e Apropriação cultural. Ou seja, outros livros que merecem sua atenção. Clique aqui para saber mais.
Livro #2 para sair da bolha branca e se unir à luta antirracista:
Olhos d’água
Meu coração aperta só de pensar na experiência que foi ler este livro. Tanto que eu me lembro de onde estava quando li o conto que mais mexeu comigo (e que me levou às lágrimas)…
No Goodreads, eu descrevi assim:
“Que livro!
Sensível, ao mesmo tempo forte. Triste, ao mesmo tempo lindo.
É impossível ler os contos escritos por Conceição Evaristo e não se colocar no lugar dos personagens e parar para pensar sobre como os negros ainda sofrem no Brasil…
Definitivamente, é um livro que todo mundo deveria ler. Algumas histórias ficarão para sempre na minha mente. Não é um livro para se ler uma só vez. Merece várias releituras!”
O fato de o cenário das histórias ser o Brasil torna a leitura ainda mais intensa. Afinal, de dentro da nossa bolha, muitas vezes a gente esquece que nossa vida boa é fruto de muito, muito privilégio.
Conceição Evaristo fala não só sobre raça, mas também sobre pobreza, machismo, maternidade e diversos outros assuntos essencialmente humanos.
“Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas.”
Livro #4 para sair da bolha branca e se unir à luta antirracista:
Fique comigo
Do Brasil vamos para a Nigéria.
Fique comigo, romance de estreia de Ayòbámi Adébáyò, se passa nos anos 1980, década marcada por forte turbulência política e social no país africano. O contexto histórico, porém, não é o tema central da obra.
Nas 256 páginas deste livro envolvente, incômodo e até mesmo triste, o leitor conhece o papel da mulher na sociedade nigeriana no final do século XX, entende o impacto nas relações matrimoniais da poligamia permitida (e incentivada!) aos homens, tem exemplos de como o machismo pode destruir a vida de homens e mulheres, nota como relações familiares podem prejudicar a vida de um casal, e muito mais.
Ou seja, é um exemplo perfeito de livro para sair de bolhas como a minha – branca, de classe média, que nunca viveu uma guerra em seu país.
Precisamos aprender com a História. E não só com a nossa, mas com a dos outros também. E boas ficções – como Fique comigo – podem ajudar (e muito) nesse processo.
“Como acontece com frequência na vida, às vezes, a boa fortuna de uma pessoa é consequência direta da ruína de outra.”
Livro #5 para sair da bolha branca e se unir à luta antirracista:
Kindred
O último livro que selecionei para essa lista é o mais diferente de todos. Kindred é uma ficção científica. Aliás, a primeira escrita por uma mulher negra – a americana Octavia E. Butler. Olha só a premissa da obra:
“Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça.
Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida… até acontecer de novo. E de novo.
Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado.”
Esse livro é espetacular!
Se a experiência de viver nos EUA escravocrata ensina tanto a Dana – uma mulher negra –, imagine o quanto pode ensinar a nós.
A edição de Kindred que eu adquiri merece uma recomendação à parte. De capa dura, linda :), ela traz ao fim questões para discussão (que rendem conversas riquíssimas), além de um texto manuscrito em que a autora coloca no papel seus desejos como escritora. É de arrepiar.
“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco.” Octavia E. Butler
“A escravidão era um processo que matava pouco a pouco.”
Outras dicas para sair da bolha branca e se unir à luta antirracista
Mas não são apenas livros que nos ajudam a sair da bolha branca.
Os acontecimentos recentes – assassinato de George Floyd, Marcos Vinícius da Silva e Breonna Taylor, dentre outros – contribuíram para iniciar, em diversas mídias, uma onda de produção interessante para quem deseja ampliar seu olhar.
Só nas últimas semanas, eu ouvi alguns episódios de podcasts sobre o assunto, conheci influenciadores digitais negros indicados por diversas pessoas que acompanho e assisti a vídeos sobre o tema. Sugiro que você faça o mesmo.
Aqui vão algumas indicações:
A única nota de repúdio que realmente importa
Todo mundo sabe que o racismo existe no Brasil, mas ninguém se acha racista
Episódio “Dia da África”, do podcast Mamilos
Episódio “Trabalhadoras domésticas”, do podcast Mamilos
3 perfis que merecem seu “seguir” no Instagram:
Paro aqui para não me alongar demais. Porém, repito o que disse quando falei sobre os livros que selecionei: estas são apenas algumas amostras de conteúdos de qualidade que nos ajudam a sair da nossa zona de conforto.
Há muita coisa sendo produzida por pessoas negras para quem busca formas de se unir à luta antirracista. Cabe a nós ir atrás desses materiais, reconhecer nossos privilégios e, depois de entender o nosso papel, usar nossa voz para combater o racismo e fazer da luta antirracista uma luta de todos.
Você vem comigo?
E aí, quais são os livros que você leu e que te ajudaram a sair da sua bolha? Além disso, tem outros vídeos, episódios de podcast e perfis nas redes sociais para indicar? Deixe um comentário com as suas sugestões e me ajude a seguir nessa jornada. A gente precisa ir juntos!
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