As empresas zebra surgiram para bater de frente com os unicórnios. Quer entender essa história?
Nos últimos anos, unicórnios (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) passaram a circular entre nós. A busca por ter uma empresa bilionária se tornou objeto de desejo de startupeiros mundo afora e de investidores interessados em abocanhar uma fatia de cifras bilionárias.
Entre 2015 e 2019, o número de startups no Brasil mais que triplicou. De pouco mais de 4 mil passamos para quase 13 mil, de acordo com a Associação Brasileira de Startups (Abstartups). Somente em 2019, as startups brasileiras captaram R$ 8,7 bilhões em investimentos, alta de 40% com relação ao ano anterior.
Algo que sempre passa pela minha cabeça são as histórias não contadas em meio aos champagnes estourados em fotos no LinkedIn.
– Quantas empresas não foram aceleradas rápido demais a ponto de perderem o controle?
– Algo seria diferente se o crescimento fosse mais natural e espontâneo?
– Como explicar situações como a da Yellow, que acabou com o seu serviço de aluguel de bicicletas e patinetes em 14 cidades do Brasil em pouco mais de um ano de operação e após ter recebido investimento de US$ 63 milhões?
O fato é que notícias sobre rodadas de investimento multi milionárias se tornaram recorrentes nas editorias de negócio. Na prática, nada é muito diferente do que sempre existiu no jogo capitalista. O objetivo por trás dos investimentos em startups é gerar lucros exponenciais e encher o bolso do acionista.
Só que com o adicional de que para isso ocorrer, é preciso fazer com que a investida venha a ser adquirida ou abra o capital. Para isso, jorra-se dinheiro para a startup crescer rápido, escalar, mitigar concorrentes e se antecipar a eventuais regulações governamentais.
Nessa dinâmica, a startup é apenas uma peça na engrenagem do capital. Logo, pode ser tão descartável como as bicicletas da Yellow.
A história explica
Em Sapiens – Uma breve história sobre a humanidade, Yuval Noah Harari traz um exemplo oportuno para explicar como uma camada de realidade criada pelo homem se tornou maior do que o que realmente deveria.
Em um capítulo que revela como os Sapiens se tornaram contadores de história para dar significado ao (seu) mundo, Harari diz que a maioria dos animais vive uma realidade dupla.
“De um lado, animais como lobos e gatos são familiarizados com entidades objetivas externas, como árvores, rochas e rios. Por outro, estão cientes de experiências subjetivas que ocorrem dentro deles, como medo, satisfação e desejo. Os Sapiens, em contrapartida, vivem numa realidade com três camadas. Em acréscimo a árvores, rios, medos e desejos, o mundo Sapiens também contém histórias sobre dinheiro, deuses, nações e corporações. Com o desenrolar da história, cresce o impacto de deuses, nações e corporações em detrimento de rios, medos e desejos. Ainda há muitos rios no mundo, e as pessoas ainda são motivadas por seus medos e seus desejos, mas Jesus Cristo, a República Francesa e a Apple represam e refreiam os rios e aprenderam a moldar nossos mais profundos anseios e ânsias.”
E se estamos aqui falando de unicórnios como sinônimo de corporações, fica difícil questionar o argumento do autor de como precisamos contar histórias para transformar em fantástico algo que não deveria ter a importância que tem.
É claro que no meio dessas milhares de startups existem empresas que têm preocupações que vão ao encontro de entidades objetivas externas citadas por Harari e além dos interesses financeiros pessoais de fundadores e investidores (caso, por exemplo, das empresas zebra e das B Corps), mas, em geral, isso pouco importa no ecossistema padrão das startups, regido pelo mantra da escalabilidade e revelado ao mundo com muito storytelling pensado para vender suas ideias.
“Ficção não é algo ruim. Sem as histórias comumente aceitas sobre dinheiro, Estados ou corporações, nenhuma sociedade humana complexa poderia funcionar. Mas as histórias são apenas ferramentas. Elas não deveriam se tornar nossos objetivos, ou nossos parâmetros. Quando esquecemos que são mera ficção, perdemos o contato com a realidade. Depois começamos a fazer guerras ‘para fazer muito dinheiro para a corporação’ ou ‘para proteger o interesse nacional’. Corporações, dinheiro e nações existem apenas em nossa imaginação. Nós os inventamos para nos servirem; por que chegamos a sacrificar nossas vidas a seu serviço?”
Yuval Noah Harari em Sapiens
As empresas zebra como a antítese dos unicórnios
Como uma contracultura a este contexto nocivo surgem movimentos como o das empresas B e outros semelhantes em diferentes nichos de mercado.
No Vale do Silício, reino encantado dos unicórnios, quatro mulheres que atuam no mercado de startups estão questionando a forma como as coisas geralmente se desenrolam no universo dos unicórnios.
A Zebras Unite (comunidade das empresas zebra) foi fundada com o objetivo de promover um movimento mais ético e inclusivo para contrapor à cultura que domina o mercado de startups e de capital de risco (venture capital).
Na comunidade online já são quase 5 mil membros – entre fundadores de startups, investidores e aliados da causa. No texto “Zebras consertam o que os unicórnios quebram”, que é o manifesto que marcou o lançamento do grupo, Jennifer Brandel, Mara Zepeda, Astrid Scholz & Aniyia Williams, idealizadoras do movimento, dizem:
“Nós acreditamos que criar modelos de negócios alternativos ao status quo das startups se tornou o desafio moral central nos dias de hoje. Esses modelos alternativos vão equilibrar lucro e propósito, favorecer a democracia e dividir poder e recursos. Empresas que criam uma sociedade mais justa e responsável vão ouvir e ajudar as comunidades que servem.”
Segundo Mara Zepeda – uma das quatro fundadoras do movimento das empresas zebra –, o modelo de investimentos em startups está quebrado porque atende a poucos fundadores e empresas.
Em entrevista à Época Negócios, ela falou sobre os erros na mecânica do sistema de investimento em startups.
“O setor está focado em uma pequena porcentagem de companhias com potencial de alto crescimento. E esses investidores estão procurando um padrão de unicórnio específico. Ao longo do processo, muitos outros empreendedores ficam fora da equação. Cerca de 2% do financiamento para startups (nos EUA) foi destinado a empresas fundadas por mulheres. Apenas 1% foi para fundadores afro-americanos e latinos. Pelo menos 84% dos empreendedores não terão acesso a empréstimos bancários ou capital de risco para financiar seus negócios, porque eles caem nesse ‘abismo de capital’. Com 81% dos fundos provenientes de patrimônio líquido pessoal, riqueza de família ou conexões de network, não é nenhum mistério por que, atualmente, a maioria dos empreendedores é composta por homens, brancos e mais velhos.”
A boa notícia é que o debate está indo além das fronteiras das zebras.
Em janeiro de 2019, o jornal New York Times publicou uma matéria em que fala sobre startups que estão rompendo a tradicional – e, muitas vezes, tóxica – relação com investidores.
No texto, Mara Zepeda diz que tem ouvido de muitos investidores:
– Não posso dizer isso publicamente, mas faço parte da máquina, sei que está quebrada e que existe um caminho melhor.
Motivadas por um desejo de perseguir um crescimento mais sustentável e autêntico, empresas como a Buffer, software de gerenciamento de redes sociais, recompraram a participação de investidores. “O investimento de capital de risco te força a esse resultado binário de ‘aquisição ou IPO’ – ou falência. As pessoas estão começando a questionar isso”, conta Joel Gascoigne, co-fundador da Buffer. Ele disse ter recebido mais de 100 e-mails de startupeiros que se sentiram inspirados e/ou com inveja do feito.
Mas e por que empresas zebra?
Bom, antes de qualquer coisa, zebras existem – o que já ajuda a trazer a conversa para a realidade. Elas vivem em grupo e, por isso, são mais fortes e resilientes. Não sacrificam uma por outra. Pelo contrário, por se protegerem, se fortalecem como comunidade. E são “preto no branco”, transparentes. “Não são criaturas míticas que vivem na floresta. Vivem em grupo, têm muita energia, se adaptam com facilidade e nunca foram domesticadas. Priorizam mais do que o crescimento e buscam prosperar como grupo”, explicam as autoras do movimento.
Simbolismos à parte, a ideia por trás do movimento é valorizar negócios que buscam retornos sustentáveis, são comprometidos com a comunidade e o ecossistema que operam. “O modelo de negócios é a mensagem”, diz Zepeda.
A tabela abaixo mostra o que são empresas zebra, o que fazem e por que existem, em comparação à sua antítese – os unicórnios.
Fonte: Zebras Unite
No manifesto, as fundadoras dizem que “o sistema de capitais está falhando com a sociedade, em partes, porque está carente de empresas zebra: negócios lucrativos que resolvem problemas significativos e reparam problemas sociais existentes. Não podemos pensar que essas empresas serão criadas por acidente. Temos que, intencionalmente, construir a infraestrutura para nutri-las”.
Se você se interessou pela ideia, recomendo que faça parte da comunidade. É um ambiente aberto dedicado a promover debates e conexões entre pessoas, startups e investidores.
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