Se não (só) o lucro, o que mais, então? A resposta consiste em uma sigla: ESG, que representa práticas ambientais, sociais e de governança
O questionamento do título deste artigo sintetiza uma percepção crescente entre profissionais de diferentes gerações: o tempo do olhar focado só no lucro está ficando para trás.
É verdade que essa visão tende a ser mais intensa entre jovens em início de carreira, que parecem ingressar no mercado de trabalho já com um “filtro de fábrica” contra empresas alheias ao impacto social e ambiental que suas operações geram. No entanto, não é muito diferente do sentimento compartilhado por profissionais com décadas de experiência e carreiras consolidadas, mas exaustos, e com um sentimento de vazio existencial “ao chegar lá”.
Até porque, em um sistema movido pela meritocracia, pela competição e pela concentração de renda, a corrida de ratos não tem fim – aconteça ela na base ou no topo da pirâmide.
A história de Francine Pena Póvoa, que decidiu mudar de ares depois de quase 20 anos como executiva, é um retrato do que tem motivado muitas pessoas a fazerem uma transição de carreira.
Essa ressignificação do trabalho quase sempre tem a ver com a busca por algo mais significativo e real do que o (nem sempre alcançado) pote de ouro no fim de um arco-íris sem cor.
“Nunca me identifiquei com a fala de que nenhuma empresa é confiável, que todos os empresários são ruins. Mas também nunca me identifiquei com a visão de ‘sangue nos olhos’ nos negócios. ‘Onde me encontro nisso, pensava?’ A verdade é que não me encontrava.”
Francine começou a reconstruir sua carreira em 2019, quando fundou a Legacy4Business, consultoria com foco em estratégia e comunicação de práticas ESG, cultura organizacional e gestão da mudança.
Antes disso, porém, foi gestora e executiva de empresas de médio e grande porte por 17 anos. Sentia-se realizada no mundo corporativo, mas sempre pensava que era possível fazer mais. “As empresas têm um poder enorme de transformar a sociedade para melhor. Não é possível que fiquemos restritos a essa obsessão pelo lucro. Sempre acreditei que o lucro é superimportante, mas não pode ser a única razão de ser de um negócio. Não é pelo lucro que a gente deve acordar e ir trabalhar. Essa é uma das questões, mas não pode ser a única.”
No ano 2000, Kofi Annan, diplomata ganês e então secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), lançou o Pacto Global.
O objetivo deste programa era estimular empresas a seguirem, voluntariamente, um conjunto de estratégias e operações ligadas a 10 princípios universais nas áreas de Direitos Humanos, Trabalho, Meio Ambiente e Anticorrupção.
Quatro anos depois, Annan assinou uma carta em nome do Pacto Global intitulada Who Cares Wins (Quem se importa ganha), endereçada às 50 maiores instituições financeiras do mundo e conclamando o sistema a incluir pautas ambientais, sociais e de governança em sua gestão.
Este texto é o primeiro registro oficial do termo ESG. A sigla representa práticas ambientais, sociais e de governança e vem do inglês (Environmental, Social e Governance). Francine ainda não sabia, mas nascia ali o que, 15 anos depois, viria a ser o principal pilar para a então executiva encontrar seu propósito profissional.
Curiosidade: hoje, o Global Compact reúne mais de 16 mil membros, entre empresas e organizações de 160 países.
Apesar de ter nascido há quase duas décadas, a discussão sobre ESG só se popularizou nos meios empresariais nos últimos anos, impulsionada por tendências de mercado atreladas às mudanças climáticas, às demais pautas da Agenda 2030 e, especialmente, aos desmembramentos da pandemia.
Os próprios Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) surgiram na esteira desse debate, bem como outros movimentos, como a já tradicional carta a CEOs de Larry Fink, chairman da BlackRock, maior gestora de ativos do planeta. Em 2019, o documento teve grande repercussão no mercado financeiro e ajudou a propagar os conceitos ESG. Isso ocorreu porque uma das máximas da lógica que rege o mercado é que as coisas realmente só são consideradas quando alguém que gerencia alguns bilhões ou trilhões se posiciona.
Provavelmente seria mais eficiente ouvir cientistas, ambientalistas e humanistas que costumam alertar o caos com alguma antecedência, mas, como me disse Francine, “foi preciso uma pandemia para nos sacudir e expor a fragilidade do sistema. Tivemos que tomar medidas urgentes”.
O gráfico abaixo, que mostra o volume de busca pelo termo ESG no Google desde 2004, ilustra como isso se reflete na realidade. Perceba como o debate foi escanteado com o passar dos anos, até voltar a ganhar força justamente no início da pandemia.
Só que se no começo do século XXI a discussão partia da ONU, era voltada aos maiores bancos do mundo e por muito tempo esteve atrelada majoritariamente ao mercado financeiro, a agências de risco e fundos de investimento, agora ela passa a fazer parte do dia a dia de empresas de todos os portes que entenderam que o momento que vivemos – o zeitgeist da era pandêmica – é marcado por um redesenho do que é (e a quem serve) o capitalismo.
Para que os fundamentos do ESG se transformem em ações práticas em escala, precisamos de uma mentalidade e de uma abordagem de negócios que seja o suporte disso. “Caso contrário, será apenas uma questão de avaliação de risco. Se realmente quisermos avançar, precisamos de uma cultura organizacional forte e de lideranças conscientes que apoiem a transformação. Temos cada vez mais exemplos no Brasil e no mundo, mas isso passa por uma mudança de valores, de mentalidade e do real conceito de sucesso”, provoca Francine.
Após se desligar de sua carreira executiva, Francine reservou um período de seis meses para descansar e estudar áreas de seu interesse.
Em janeiro de 2019, leu o livro Capitalismo Consciente, de John Mackey e Raj Sisodia, e teve o primeiro contato com o Capitalismo Consciente e com o Sistema B. “Senti que tinha encontrado minha turma. Não sabia ainda como iria trabalhar com isso, mas fui me envolvendo. Hoje, atuo voluntariamente como multiplicadora do Sistema B e como embaixadora e líder regional (MG) do Capitalismo Consciente. Nosso propósito é criar uma comunidade local de pessoas e empresas que se identificam com os pilares do Capitalismo Consciente e que queiram aprender e compartilhar”, explica.
Como resultado de sua jornada de redescoberta profissional iniciada há pouco mais de dois anos, Francine fundou a Legacy4Business. A empresa ajuda empresas a implementarem uma cultura voltada a um propósito maior que o lucro, a cultivar uma liderança e gestão conscientes e a promover a interdependência de stakeholders.
“Somos procurados por consultores que querem aprender os conceitos para implantarem em suas metodologias de gestão, por empresários de pequeno e médio porte que têm esse olhar mais consciente e por startups que já nascem com essa mentalidade. Além disso, com o aumento da discussão sobre ESG, estamos começando a ser abordados por empresas maiores”, revela.
“Meu primeiro cliente foi o Diário do Comércio, uma empresa familiar de 88 anos que está sob o comando da terceira geração e, pela primeira vez, com uma mulher na presidência.
É uma empresa tradicional muito querida em Minas Gerais que me contratou para realizar uma consultoria estratégica focada em implantar os pilares do Capitalismo Consciente, muito alinhados ao reposicionamento do jornal para um jornalismo propositivo.”
Apesar dos avanços, os desafios ainda são grandes. Afinal, como fazer com que conceitos que podem soar abstratos ou até mesmo irrelevantes para um gestor pragmático sejam incorporados como a base para guiar a transformação cultural de uma organização?
Se você é gestor, sugiro conversar com a Francine. Agora, se deseja levar o debate sobre ESG para a liderança da empresa em que trabalha, a base para iniciar um diálogo tem que ser relacionada ao quanto uma cultura ESG tem o potencial de gerar valor para todos os stakeholders. “Quando evidenciamos para a alta gestão que é possível construir isso através de um modelo de negócio mais responsável, que está sendo cada vez mais exigido pelo mercado financeiro e pela sociedade e que todos os olhares estão atentos a isso, os decisores entendem que precisam se inteirar”, orienta.
“Gestores são constantemente pressionados de todos os lados. E o dia a dia os absorve de forma absurda. É muito difícil que as coisas avancem se a liderança não estiver convencida. Ela tem que abraçar isso. Um profissional como o Gerente de Sustentabilidade (ou outro) não vai conseguir fazer com que as ideias avancem sozinho, mas pode influenciar. Quem fará é a alta gestão. Eu, como profissional, posso ser uma fonte importante de influência se conseguir demonstrar que vale a pena, inclusive financeiramente, seguir esse caminho.”
Diversas pesquisas comprovam que empresas mais conscientes de seu papel social e ambiental são mais rentáveis que seus pares. “Existem evidências que mostram que é lucrativo seguir esse caminho. Agora, é muito importante entendermos que o resultado financeiro não vai vir no primeiro trimestre e no curto prazo. Ele vai demorar um pouco mais, no entanto, é mais sustentável”, orienta.
Segundo Francine, empresas que adotam critérios ligados à ESG, ao Sistema B e ao Capitalismo Consciente, tendem a colher os seguintes resultados:
“Tenho convicção de que é possível fazermos a diferença no mundo. E o mundo começa dentro de casa, com a família e os amigos. Cada um faz a diferença dentro de suas possibilidades e área de atuação. Sou uma pessoa otimista, mas muito pé no chão. É preciso encarar os desafios, que são muitos, mas penso que há um caminho muito interessante e que cada vez mais pessoas e empresas estão querendo trilhar esse caminho”, conclui.
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